Um mantra da mineração, especialmente na maioria dos países com tradição mineral, é o reconhecimento da prevalência da atividade em disputas de espaço com outras modalidades de uso por terceiros.
Esse quase-dogma faz sentido. Além do interesse público da mineração, a rigidez locacional dos depósitos minerais protege esse uso preferencial. Tal prerrogativa foi e continua sendo decisiva para o desenvolvimento de projetos minerários. É essencial para a mitigação de restrições ambientais, fundiárias e sociais a eles aplicados. Exerce papel preponderante na solução de conflitos com terceiros resistentes à atividade, permitindo às empresas valerem-se de normas que materializam essa proteção para fazerem seus empreendimentos prevalecerem.
Há pelo menos uma década, todavia, esse discurso tornou-se insuficiente. Posições antagonistas à mineração – algumas legítimas, outras questionáveis – obrigaram as empresas a evoluir, engajando e articulando com a comunidade envolvida os interesses de todos para conseguirem operar de forma consistente.
A realidade é clara: não basta deter os consentimentos estatais necessários à mineração. É preciso construir consensos com os envolvidos, protegendo não só a viabilidade da atividade, mas também a reputação dos operadores1.
O investimento na chamada licença social para operar – ou sua versão atualizada, denominada licença de desenvolvimento sustentável para operar2 – já foi exaustivamente pesquisado em vários ramos científicos.
Contudo, seus efeitos estão sendo percebidos pela indústria mineral em um novo contexto: nas disputas arbitrais envolvendo investidores e Estados.
Divisão da renda mineral, conflitos e disputas arbitrais
O aumento vertiginoso dos preços das commodities minerais, entre 2005 e 2015, desencadeou<3, entre outras, duas consequências relevantes: (a) o descontentamento dos Estados com o retorno financeiro proveniente de tais atividades para os cofres públicos4 e (b) a insatisfação de comunidades próximas em razão do incômodo trazido pela expansão dos projetos. Tais fatos geraram uma onda de revisão global das normas minerárias, de renegociação de contratos5 e, em países menos aderentes ao devido processo legal, expropriação de títulos minerários.
Em vários casos as novas regras impostas pelos Estados não foram aceitas por mineradores, instaurando-se litígios, em sua maioria perante tribunais arbitrais6, com base em cláusulas estipuladas em tratados bilaterais de investimento. Assim como observado no setor de óleo e gás durante as décadas de 70 e 80, várias decisões sobre os limites do Estado no exercício de sua soberania, especialmente relacionada ao poder de alteração das normas, concessões e contratos, foram proferidas, ampliando a fonte de precedentes arbitrais no setor mineral.
Especialmente em relação ao impacto da resistência social em disputas arbitrais na mineração, três casos recentes na América Latina merecem uma análise mais profunda: Bear Creek x Peru, Copper Mesa x Equador eSouth American Silver x Bolivia.
Em todos a expropriação de ativos foi reconhecida. Todavia, as circunstâncias de cada um levaram a consequências distintas no cálculo da indenização devida aos investidores.
Bear Creek x Peru
A disputa, iniciada em 2014 e decidida em 2018, envolveu o cancelamento de concessões de um grande projeto de prata, na região de Santa Ana, sudeste do Peru, em razão de movimentos antimineração, incluindo oposição da população indígena. O cancelamento se deu por decreto Presidencial (Decreto Supremo 032), ao argumento que o projeto não se enquadraria no interesse nacional.
A decisão arbitral reconheceu que a atuação do Estado foi expropriatória, afirmando a tomada ilegal da propriedade dos investidores, com nítida afronta ao devido processo legal. Os árbitros concluíram que o Decreto Supremo violou as legítimas expectativas do empreendedor que, ao adquirir as concessões, tomou todas as providências previstas na norma para desenvolver o projeto. Além disso, a medida, ainda que supostamente legitimada no interesse nacional, teve caráter essencialmente político, violando as normas peruanas sobre o desenvolvimento de projetos minerais, bem como as disposições essenciais de proteção do investimento previsto no Tratado Bilateral de Investimentos entre Canadá e Peru.
A parte polêmica da decisão, contudo, é a referente ao cálculo da compensação devida. Duas questões relevantes foram debatidas: (a) a conduta do investidor e sua relação com os movimentos antimineração e (b) as chances de o empreendimento prosperar, ainda que não tivesse suas concessões canceladas.
Em relação ao primeiro item, a decisão reconheceu que, embora a empresa pudesse ter tomado medidas mais efetivas para vencer a resistência local às atividades, atuando de forma a envolver a comunidade no projeto, não descumpriu as normas peruanas no que concerne aos consentimentos necessários para avançar com o projeto. O voto divergente de um dos árbitros7 sugeriu que, em razão da conduta da empresa, o valor devido a título de indenização deveria ser reduzido. O Tribunal, por maioria, rejeitou a tese.
Sobre o segundo item, o Tribunal não acatou o argumento do investidor de que a indenização deveria se dar com base na avaliação do preço de mercado do projeto. Os árbitros, examinando as provas e reconhecendo as várias frentes de resistência ao avanço do empreendimento, concluíram que as chances de o investidor obter a licença social para operar eram remotas, tornando-o inviável. Nesse contexto, o Tribunal determinou que a compensação fosse feita com base nos valores efetivamente investidos pelo empreendedor, e não no seu possível ganho. Dos US$ 522 milhões pleiteados, com base na metodologia de Fluxo de Caixa Descontado, o investidor obteve cerca de US$ 30.4 milhões (US$18.2 milhões investidos, mais juros, despesas e honorários)8.
A decisão é relevante e demanda atenção dos investidores.
O Tribunal reconheceu que licença social para operar não é só circunstância essencial na operação do projeto, mas na avaliação da sua viabilidade econômica. Se, por um lado, ratificou o entendimento de que a resistência das comunidades não afeta o direito criado para o investidor que adquiriu, validamente, os respectivos Títulos Minerários, devendo ser compensado na hipótese de o Estado violar a confiança estabelecida quando do início do projeto, por outro, levou em consideração que as dificuldades sociais enfrentadas, somadas à oposição qualificada, comprometeram o seu desenvolvimento, impedindo que a indenização englobasse eventuais lucros cessantes.
Copper Mesa x Ecuador
O segundo caso é oCopper Mesa x Ecuador, iniciado em 2012 e julgado em 2016. A disputa surgiu de dois atos praticados pelo Equador: (a) o cancelamento de determinados títulos minerários devido à suposta não condução de estudos ambientais e (b) a criação de regras que reduziram a área dos títulos, sem indenização aos investidores.
O Tribunal Arbitral considerou que dois dos três títulos foram expropriados, com a violação do Tratado Bilateral de Investimento entre Canadá e Equador. Foi determinado o pagamento de cerca de US$ 19 milhões aos investidores.
A decisão confirmou que medidas governamentais expropriatórias, ainda que com aparência de legalidade, devem ser tomadas em respeito à ordem internacional de proteção da propriedade. Para o setor mineral, é uma decisão relevante, pois reafirma o caráter patrimonial dos títulos minerários, e que qualquer medida imposta ao aproveitamento destes, ainda que não determine o seu desapossamento completo pelo investidor, constitui desapropriação indireta, determinando a compensação financeira.
Todavia, a decisão traz aspectos relevantes: a influência da conduta do investidor na medida expropriatória do Estado e o reflexo desta na definição do valor da compensação. O tribunal, ao apontar algumas condutas temerárias relacionadas à repressão violenta dos movimentos antimineração, articuladas por oficiais seniores da empresa, atribuiu ao investidor 30% da responsabilidade pela frustração do projeto, percentual que foi reduzido do valor da indenização.
South American Silver x Bolívia
Por último, registra-se o relevante caso envolvendo a South American Silver contra a Bolívia, e julgado em 2018.
Por meio de sociedades subsidiárias, South American Silver iniciou suas operações na Bolívia em 1994, adquirindo dez títulos minerários de pesquisa (Projeto Malku Khota). Após análises técnico-econômicas, a empresa obteve a concessão de três minas subterrâneas. O Projeto Malku Khota estava localizado em área habitada por povos indígenas Aymara e Quechua que, por meio de complexa organização social, possuíam espécie de governo próprio e gozavam de certa autonomia em relação ao governo boliviano.
Em meados de 2010, com a expansão das atividades de mineração, foram reportados impactos ambientais em locais considerados sagrados pela comunidade local. Com isso, lideranças nativas, por meio de processo decisório próprio e sem a intervenção do governo central boliviano, declararam a presença de South American Silver ilegal. As atividades foram paralisadas em seguida.
Após o agravamento dos conflitos que atingiram a violência física entre parcela da comunidade que apoiava as atividades de mineração e parcela, mais numerosa, dissidente, foi publicado decreto expropriatório pela Bolívia. Pouco tempo depois a Bolívia assumiu as operações minerárias por meio de companhias estatais.
South American Silver entendeu que houve violação ao Tratado Bilateral. A Bolívia, por sua vez, entendeu que a reversão das concessões era essencial para a resolução dos conflitos com os povos nativos.
O Tribunal Arbitral entendeu que o o decreto de nacionalização do Projeto Malku Khota apresentou suficiente justificativa de interesse público, voltado à proteção dos direitos humanos das comunidades tradicionais. As medidas tomadas pela Bolívia intencionavam a pacificação de conflitos sociais que se estendiam por longos meses, com graves consequências sociais, como o uso de violência, e econômicas, como a deterioração do meio ambiente.
Todavia, o terceiro aspecto fundamental analisado pelo tribunal, a respeito da existência ou não de expropriação direta, foi se a ausência de compensação prévia constituiria violação dos princípios internacionais de proteção ao investimento estrangeiro. A despeito da ausência de prazo especificado para pagamento de compensação, o Tribunal Arbitral concluiu que a compensação não foi paga, fato que determinou o reconhecimento da desapropriação. Em razão do estágio inicial, o tribunal decidiu pela indenização baseada nos custos envolvidos no projeto até a sua expropriação.
Independentemente da disputa relacionada ao valor dos danos apurados, a decisão enfrentou uma questão relevantíssima associada à expropriação de ativos minerários: a impossibilidade de as medidas de proteção a comunidades prejudicarem os investidores que, com base nas legítimas expectativas criadas pelo Estado, aportam recursos.
Todavia, o tribunal reconheceu que é possível ao Estado, no exercício da soberania, exercer suas prerrogativas de escolha em conflitos envolvendo o uso do território. Nesse sentido, legitimou a atitude do governo boliviano, fato relevante no método do cálculo da indenização, pois, na mesma linha dos dois casos anteriores, negou o pedido de compensação pelo valor de mercado das áreas, com base em seus resultados futuros, e, utilizando o valor dos investimentos como parâmetro. Nesse cenário, o pleito inicial de US$ 385 milhões foi reduzido a US$ 18.7 milhões9.
Tendência?
A investigação desses precedentes é relevante por duas razões: (a) embora não sejam vinculantes, as decisões arbitrais auxiliam na formação do processo decisório em disputas similares, e (b) embora não exista uma identidade absoluta de regulamentos, práticas e contratos no setor mineral, a expansão global da atividade desencadeou estruturas legais similares, também capazes de influenciar novos casos com base em decisões antigas.
Diante disso, fica claro que a análise dos casos ajuda a identificar tendências para sua resolução, permitindo que empresas e Estados antecipem os ajustes e a padronização de condutas.
Em razão do debate – atualíssimo, por sinal – envolvendo a mineração em áreas socialmente sensíveis (em centros urbanos, próxima a áreas indígenas em imóveis ocupados por quilombolas), tais disputam reforçam que as empresas invistam em boas práticas de governança, reduzindo os riscos financeiros e de imagem relacionadas a seus projetos.
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1 Sobre o engajamento social de empresas de mineração, recomenda-se a leitura do excelente artigo de James Otto sobre os Communities Development Agreements. Otto, James M.. 2010. Community development agreement: model regulations and example guidelines (English). Washington, DC: World Bank.
4 J.D. Sachs, J. D. (2007) in Humphreys, M., Sachs, J.D., Stiglitz, J.E. (eds.), pp. 173–193.
5 Sachs, L. et al. (2012), p. 12.
6 Sobre disputas arbitrais envolvendo a indústria mineral, recomenda-se o brilhante trabalho de Henry Burnett e Louis-Alexis Bret Arbitration os International Mining Disputes, Oxford, 2017.
9 Sobre os métodos de cálculo das indenizações em disputas na indústria mineral, recomenda-se a leitura do artigo Valuation of Non-Producing Mineral Properties, de Damien Nyer and Xuefeng Wu, publicado em The Guide to Mining Arbitrations, 2019.
Por TIAGO DE MATTOS SILVA – Sócio do William Freire Advogados Associados e presidente do Instituto Brasileiro de Direito Minerário – IBDM , escrevendo da biblioteca do Centre for Energy, Petroleum, Mineral Law and Policy (CEPMLP), Universidade de Dundee, Escócia https://www.dundee.ac.uk/cepmlp
Fonte: Jota – 03/11/2019 09:26
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