Uma das mais celebradas definições de arbitragem define o procedimento como técnica para a solução de controvérsias através da intervenção de uma ou mais pessoas que recebem seus poderes de uma convenção privada, decidindo com base nesta convenção sem intervenção do Estado, sendo a decisão destinada a assumir eficácia de sentença judicial.[1]
Muito embora presente no ordenamento jurídico Brasileiro desde 1939 (Artigos 1.031 a 1.046 do Decreto-Lei 1.608/1939) e posteriormente no Código de Processo Civil Brasileiro 1973 (Lei 5.869/1973), o procedimento arbitral jamais teve a esperada aplicação dada à necessidade de intervenção obrigatória do Poder Judiciário a fim de viabilizar as decisões arbitrais.
Apenas no final da década de 1990, com a promulgação da Lei 9.307/96, que deu nova roupagem ao instituto da arbitragem no Brasil, facultando às partes capazes contratarem um árbitro para solucionarem seus litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis[2], o procedimento passou a ser adotado com maior frequência.
Mais tarde, a Lei 13.129/2015 alterou a Lei de Arbitragem (Lei 9.307/1996) em diversos pontos, dentre os quais aqueles relativos à utilização do procedimento no âmbito do Direito Societário, acompanhando as introduções trazidas pela Lei 13.105/2015, que instituiu o então Novo Código de Processo Civil.
Antes de tais alterações legislativas, no entanto, a Lei 10.303/2001, já havia introduzido à legislação societária a possibilidade de composição de litígios por meio do procedimento arbitral, acrescendo ao artigo 109 da Lei 6.404/1976 seu parágrafo terceiro, que assim dispõe:
O estatuto da sociedade pode estabelecer que as divergências entre os acionistas e a companhia, ou entre os acionistas controladores e os acionistas minoritários, poderão ser solucionadas mediante arbitragem, nos termos em que especificar.
Com tais alterações legislativas, o procedimento arbitral passou as ser adotado como via de soluções mais ágeis, técnicas e sigilosas, visto que a demora na solução dos conflitos surgidos no seio da empresa, bem como a publicidade destes podem acarretar a sua instabilidade perante o mercado, colocando em risco o sucesso do empreendimento[3].
Com o incremento na utilização do procedimento arbitral na solução de litígios, vieram a reboque dúvidas e questionamentos relativos à situações não expressamente abarcadas pela legislação pátria, sendo que aqui nos interessam particularmente as questões atinentes aos efeitos e à efetivação das decisões arbitrais perante terceiros.
Neste cenário de valorização do princípio da autonomia da vontade, uma das primeiras questões a surgir no âmbito do Direito Societário dizia respeito aos efeitos de clausula compromissória prévia frente aos ingressantes em sociedade empresária.
Antes mesmo das alterações legislativas de 2015, Doutrina e Jurisprudência pátrias já haviam se posicionado no sentido de estender ao ingressante os efeitos de clausula compromissória prévia.
Na Doutrina, Valério afirmava que “pelo fato do investidor não estar obrigado a ingressar na sociedade, presume-se que ele, ao fazê-lo, manifestou voluntariamente a sua vontade, por meio da avaliação e da aceitação das disposições estatutárias da empresa”[4], enquanto Guerra dizia que “a compra de ações e a consequente participação do novo sócio na sociedade exige deste o conhecimento das relações a que a sociedade e os acionistas estão submetidos, não podendo ser equiparada ao contrato de adesão, nem ser disciplinada pelas regras próprias das relações de consumo.”[5]
No âmbito da Jurisprudência, nossos tribunais alinhavam-se à corrente Doutrinária dominante à época, reconhecendo a subsunção dos novos quotistas/acionas à cláusula compromissória já existente no estatuto/contrato social, tendo o Superior Tribunal de Justiça assim se manifestado em acórdão datado de 22/02/2016:
Recurso Especial. Processual Civil. Societário. Ação de Execução Específica de Cláusula Arbitral (Lei 9.307/96). Acordo de Acionistas. Previsão de Solução Alternativa de Conflitos: Resolução por Mediação ou Arbitragem. Compatibilidade. Cláusula Compromissória (vazia) Existência. Força Vinculante. Validade. Recurso Parcialmente Conhecido e Desprovido. 1. O convívio harmônico dos juízos arbitrais com os órgãos do Judiciário constitui ponto fundamental ao prestígio da arbitragem. Na escala de apoio do Judiciário à arbitragem, ressai como aspecto essencial o da execução específica da cláusula compromissória, sem a qual a convenção de arbitragem quedaria inócua. (…) 5. Apenas questões sobre direitos disponíveis são passíveis de submissão à arbitragem. Então, só se submetem à arbitragem as matérias sobre as quais as partes possam livremente transacionar. Se podem transacionar, sempre poderão resolver seus conflitos por mediação ou por arbitragem, métodos de solução compatíveis. 6. A ausência de maiores detalhes na previsão da mediação ou da arbitragem não invalida a deliberação originária dos contratantes, apenas traduz, em relação à segunda, cláusula arbitral “vazia”, modalidade regular prevista no art. 7º da Lei 9.307/96. 7. Recurso especial conhecido em parte e desprovido.
(REsp 1.331.100; Relatora: Min. Maria Isabel Gallotti; T4; DJe: 22/02/2016)
Não obstante a sedimentação de tal posicionamento, optou o legislador pátrio por alterar a Lei de Arbitragem de modo a inserir na Lei 6.404/1.976 seu artigo 136-A, fulminando assim qualquer dúvida sobre o tema:
Artigo 136-A. A aprovação da inserção de convenção de arbitragem no estatuto social, observado o quórum do artigo 136, obriga a todos os acionistas, assegurado ao acionista dissidente o direito de retirar-se da companhia mediante o reembolso do valor de suas ações, nos termos do artigo 45.
Evidentemente, outros questionamentos, em maior ou menor escala, surgiram a partir da aplicação prática em maior escala dos procedimentos arbitrais. Joveta e Armani, em artigo publicado em 2012, chegaram a defender a impossibilidade da utilização do procedimento arbitral como ferramenta apta a decidir pela exclusão justificada de sócio, já que isto significaria enfrentar o disposto no artigo 1.010, §2º, do Código Civil.[6]
Felizmente, os autores posteriormente modificaram seus entendimentos, fiando-se ao desenvolvimentos das discussões relativas ao tema e reconhecendo a eficácia da decisão arbitral como forma de exclusão de sócio.
Questões como estas à parte, aqui nos importa avaliar a viabilidade e efetividade das decisões arbitrais com relação a terceiros não subscritores da cláusula ou do compromisso arbitral.
A arbitragem, inegavelmente, constitui exceção ao princípio da inafastabilidade do poder judiciário disposto no artigo 5º inciso XXXV de nossa Carta Magna. Deste modo, fica condicionada a renúncia à jurisdição estatal à eleição, de forma livre, desimpedida, clara e inequívoca, do procedimento arbitral.
Quanto à necessidade de formalização, divergem os Doutrinadores. J. E. Carreira Alvim (Alvim, 2004, p. 179-180) entende não ser necessário que a cláusula compromissória se revista de determinada forma, bastando se possa demostrar a aceitação inequívoca da arbitragem por ambas as partes. Em sentido oposto, Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery (Nery, 2007, p. 1395) sustentam que “a cláusula compromissória deve ser pactuada dentro de outro contrato, sendo da essência do ato a forma escrita”[7].
Neste cenário, considerando o critério geral de não extensão dos efeitos da cláusula arbitral para partes não signatárias da avença e a necessidade de manifestação inequívoca de renúncia à jurisdição estatal, exsurge séria dúvida acerca da efetividade da decisão arbitral que determina a desconsideração da personalidade jurídica.
Em nosso ordenamento jurídico, a positivação da desconsideração da personalidade jurídica ocorreu, em primeiro momento, no Código de Defesa do Consumidor, mais especificamente em seu artigo 28:
Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
§ 1° (Vetado).
§ 2° As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.
§ 3° As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.
§ 4° As sociedades coligadas só responderão por culpa.
§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.
Posteriormente, em 2002, a mais recente versão do códex civilista brasileiro trouxe, em seu artigo 50, a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica em determinada situações, a saber:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
Finalmente, em 2015, a atualização do Código de Processo Civil Brasileiro positivou os procedimentos inerentes à desconsideração, já autorizada pelos institutos mencionados anteriormente, dedicando seus artigos 133 a 137 ao tema.
Diante da análise dos textos legais alhures, descortina-se evidente o caráter excepcional do procedimento de desconsideração da personalidade jurídica, que fica adstrito às hipóteses de fraude, abuso de direito ou confusão patrimonial.
Cabe, portanto, avaliar a possibilidade de aplicação do instituto na hipótese de detecção pelo árbitro de condutas do sócio ou do controlador que desafiem as hipóteses de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, em especial quando os “averiguados” não tenham, expressamente, aquiescido com a cláusula ou o compromisso arbitral.
Analisando a Jurisprudência pátria sobre o tema, ainda não extensa, verifica-se que os tribunais, impulsionados pela doutrina, vem considerando que a aceitação das partes ao compromisso arbitral ou à clausula arbitral significa a aceitação prévia, e tácita de seus sócios e/ou controlares, lançando mão, para tanto, dentre outros elementos, da previsão do artigo 111 do Código Civil Brasileiro.
Por tal técnica de julgamento, vêm os tribunais relativizando a necessidade de manifestação inequívoca de renúncia à jurisdição estatal, a exigência de manifestação pessoal pelo compromisso ou cláusula arbitral e, assim, legitimando a desconsideração da personalidade jurídica por decisão arbitral em situações excepcionais e em que se vislumbre possibilidade de fraude, abuso de direito ou confusão patrimonial.
De forma a referendar tal entendimento, nossa doutrina já se manifestou no sentido de que “a aceitação da clausula arbitral não deve ser necessariamente demonstrada pela assinatura das partes. A prova de sua existência pode ocorrer através do exame da conduta das partes em todas as etapas da relação contratual. Ou seja, no momento da negociação, celebração e execução do contrato ou, ainda, no próprio procedimento arbitral.”[8]
E nos parece correto o entendimento exposto acima, não só pela identificação de conduta prévia dos sócios e/ou controladores no sentido de anuir ou não discordar do procedimento arbitral, mas também como instrumento de homenagem à prevalência da boa-fé.
Nos dizeres de Viviane Muller Prado e Antonio Deccache, “não se pode esquecer que a teoria da desconsideração visa justamente a coibir o mau uso da pessoa jurídica caracterizado pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial, de modo que não parece razoável que a parte, tendo abusado da pessoa jurídica, ainda venha a dela poder se aproveitar para esquivar-se do cumprimento da obrigação de resolver seu conflito pela via arbitral” [9].
1 CARMONA, Caros Alberto, in Arbitragem e Processo, p. 43.
2 Carreira Alvim, op. cit., p. 80
3 PACHIKOSKI, Sílvia Rodrigues P.; SALLA, Ricardo Medina. Novas Perspectivas sobre a Arbitragem e o Direito Societário. In: HOLANDA, Flávia; SALLA, Ricardo Medina. A Nova Lei da Arbitragem Brasileira. São Paulo: IOB SAGE, 2015. p. 198.
4 VALÉRIO, Marco Aurélio Gumieri. Arbitragem em sociedades anônimas: vinculação dos acionistas novos, ausentes, dissidentes e administradores à cláusula compromissória estatutária. Inclusão do § 3° ao art. 109 da lei n. 6.404/1976 pela lei n. 10.303/2001. Jus Navigandi, Teresina, ª 9, n. 781, 23 ago. 2005. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7191. Acesso em 30/05/2016.
5 GUERRA, Érica. As repercussões da Lei 13.129/2015, que altera da Lei de Arbitragem, no direito de retirada das Sociedades Anônimas. Disponível em: http://ericaguerra.jusbrasil.com.br/artigos/191989445/as-repercussoes-da-lei-13129-2015-que-altera-da-lei-de-arbitragem-no-direito-de-retirada-das-sociedades-anonimas. Acesso em 30/05/2016.
6 Revista Sapere Aude: JOVETTA, Diogo Cressoni e ARMANI, Wagner José Penereiro, Parecer: retirada de sócio por falta grave e cláusula de arbitragem, Revista Sapere Aude, Revista Eletrônica Volume 8 – Ano IV março/2016, p. 111-122.
7 PRADO, Viviane Muller e DECCACHE, Antonio: Arbitragem e Desconsideração da Personalidade Jurídica, disponível em http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=f5496252609c43eb
8 WALD, Arnoldo; GALINDEZ, Valéria. Homologação de Sentença Arbitral Estrangeira. Contrato Não Assinado. Desnecessidade de Concordância Expressa Com a Cláusula Compromissória. Revista de Arbitragem e Mediação. São Paulo. V. 10, p. 243-247, jul/set. 2006.
9 PRADO, Viviane Muller e DECCACHE, Antonio: Arbitragem e Desconsideração da Personalidade Jurídica, disponível em http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=f5496252609c43eba
Por Conrado Hilsdorf Pilli, advogado, especialista em processo civil e fusões e aquisições. Pós-graduado em estruturas e operações empresariais.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 25 de junho de 2018, 6h21
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