A sobrecarga da atividade jurisdicional no Brasil é inegável, em todos os níveis. A chamada “judicialização da vida privada” é outro fenômeno que não contribui para o exercício de uma Justiça rápida e eficaz. O resultado surge, por um lado, no abarrotamento das varas e seções judiciárias e consequente morosidade de todo sistema, e, por outro lado, na constante insatisfação do jurisdicionado, a quem se oferece uma prestação jurisdicional tardia e, muitas vezes justamente por esse motivo, ineficaz.
Nas causas que envolvem relações de consumo, essa realidade se apresenta de forma muito perversa. Não obstante o grande avanço da legislação brasileira, os fornecedores insistem em práticas comercias incompatíveis com as diretrizes legais, que privilegiam a proteção do consumidor vulnerável. As intermináveis cadeias de fornecedores, a impessoalização da prestação dos serviços (sobretudo no pós-venda), a não observância de padrões de qualidade e segurança requeridos pela lei são apenas algumas das frequentes situações que resultam em constantes e diárias violações dos direitos dos consumidores. Impossibilitados de resolverem seus problemas e garantirem seus interesses e direitos diretamente com os fornecedores, outra alternativa não resta aos consumidores senão a via judicial. Essa, no entanto, não se apresenta como uma opção muito animadora. Em regra, consome tempo e recursos em demasia, que não são compatíveis com o interesse econômico do consumidor, muitas vezes de pequena monta. A experiência dos Juizados Especiais, que em tese, em face da gratuidade e da inexigibilidade de representação por advogado, ofereceria uma solução desburocratizada, portanto mais rápida, e focada na conciliação, não se mostrou na prática suficientemente eficiente. Também aqui o excesso de ações trouxe morosidade e ineficiência ao sistema. A alternativa das ações coletivas encontra grandes dificuldades, especialmente quando, por exemplo, o próprio Poder Judiciário, em decisões consolidadas, inviabiliza o controle abstrato de cláusulas abusivas[1]. Nesse contexto, a busca pela composição de conflitos fora dos tribunais pode surgir como uma alternativa real de se garantir a proteção do consumidor de uma forma mais célere e menos onerosa e em todos os aspectos mais eficiente.
Para isso é preciso compreender que o acesso à Justiça não se reduz ao acesso aos tribunais, ou, principalmente, ao acesso a uma via litigiosa para solução de conflitos. A garantia constitucional do acesso à Justiça, que é tão fundamental para a concretização do Estado de Direito, não somente pode, como também deve, se realizar por meios alternativos, que assegurem formas eficientes (e aqui leia-se rápidas) de se oferecer soluções justas e jurídicas aos seus conflitos[2]. É preciso transpor o caminho da litigiosidade para o da cooperação, de maneira a melhor assegurar o interesse de todos os jurisdicionados.
Nesse caminho, no entanto, não se pode olvidar a posição vulnerável do consumidor, e o respeito a esse princípio basilar da legislação de tutela, que deve ser incorporado aos contemporâneos instrumentos autocompositivos.
Formas alternativas, não necessariamente judicializadas, de solução de conflitos envolvendo o consumidor têm sido vistas com certa resistência no Brasil, especialmente por não se apresentarem como uma forma segura de garantir a devida proteção legal e constitucionalmente estabelecida, sobretudo no que se refere ao reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor.
A característica mais marcante de alguns meios alternativos de solução de controvérsias, tais como a mediação e a conciliação, é resgatar para os indivíduos a capacidade de autocomposição dos litígios. Entretanto, a autocomposição demanda um mínimo de equilíbrio nas relações de poder entre as partes. E as relações de consumo são caracterizadas justamente pelo desequilíbrio entre consumidor, parte mais fraca, e o fornecedor. A vulnerabilidade do consumidor em face do fornecedor é uma premissa fundamental de toda a legislação consumerista.
Parece, pois, no mínimo, uma complexa ambiguidade harmonizar a natural vulnerabilidade do consumidor com um método de solução de conflitos que pressupõe equilíbrio entre seus sujeitos. No entanto, se forem levadas em consideração algumas importantes características dos métodos autocompositivos, veremos que a vulnerabilidade do consumidor pode ser até mesmo reduzida.
Considere-se, por exemplo, uma característica de extrema relevância pertinente aos meios consensuais de composição de conflitos, que é o acolhimento dos interesses e sentimentos das partes. A via judicial contenciosa certamente não comporta essa característica tão importante para a efetiva restauração das relações sociais. Mesmo em demandas fortemente emocionais, como as relacionadas a questões familiares, os processos contenciosos, em sua grande maioria, têm sido conduzidos de maneira a não levar em consideração as particularidades afetivas de cada caso. O resgate dos sentimentos no tratamento dos conflitos sociais parece ser uma medida não somente salutar, mas necessária nos tempos contemporâneos. Não se trata aqui de transformar a mediação ou conciliação numa sessão de terapia, mas, sim, de dar espaço para a manifestação e descoberta de emoções e interesses. Essa abertura é fundamental quando se leva em consideração que a litigiosidade de consumo contém um componente de bem-estar pessoal e social/comunitário, associado a uma rede de relações humanas de alta complexidade que se pretende preservar[3] e a preservação dessas relações será melhor alcançada se for possível transpor o caminho da litigiosidade para o da cooperação, se for possível efetivamente restaurar as relações, e não somente vencer a disputa. Criar um espaço para um tratamento mais afetivo dos conflitos de consumo é inclusive, em muitas situações, uma forma de respeito à sua natural vulnerabilidade. Veja-se os exemplos de acidentes de consumo, que não poucas vezes acarretam danos que afetam profundamente aspectos emocionais, como os desastres aéreos, explosões, desabamento de construções. A reparação integral do dano à vida ou à saúde não se consolida somente com o pagamento da indenização, mas, sobretudo e especialmente, com o respeito e a inclusão, durante o procedimento litigioso, de um espaço de restauração afetiva. Para isso, é preciso que se escute a vítima, porque a repercussão do dano na esfera privada é sempre individual e particular, ainda que decorrente do mesmo acidente. Isso aconteceu no Programa de Indenização do Voo 447, da Air France, no qual um dos maiores desafios foi “a construção de uma estrutura capaz de acolher a dor, a raiva e a desconfiança das famílias”[4].
É preciso que fornecedor e consumidor se encontrem e se coloquem frente a frente como pessoas e que possam expor mutuamente seus interesses, seu pesar, seu perdão. Não são poucas as vezes em que um pedido de desculpas, um ato de gentileza, um tratamento pessoal e afetivo repara mais do que o pagamento de uma quantia em dinheiro. Obviamente, são formas cumulativas de reparação, não alternativas. Mas é preciso resgatar a humanidade nas relações de consumo e considerá-las para além de seu aspecto econômico. Acreditamos ser essa a melhor forma de respeitar e tratar a vulnerabilidade do consumidor.
Mas há também outra característica dos métodos autocompositivos que contribui para a redução da vulnerabilidade do consumidor, que é o fortalecimento da sua autonomia.
Oferecer ao consumidor outras vias que não a contenciosa judicial para solução de seus conflitos é uma forma de resgate da sua dignidade e de restauração de uma autonomia tão aviltada na sociedade de consumo contemporânea. Oferecer a possibilidade de recolocar o consumidor na posição de protagonista e senhor dos seus conflitos, de compreendê-lo como hábil e capaz de encontrar, com autonomia e com a sua efetiva participação, formas pacíficas de satisfazer seus interesses é uma maneira de resgatá-lo da posição coadjuvante que lhe é proporcionada e mesmo imposta pelo mercado de consumo. É uma maneira de reintegrá-lo ao sistema do qual foi excluído, do qual é considerado uma peça, uma engrenagem. É uma forma de resgate de sua cidadania e, por consequência, da sua humanidade.
O condutor do procedimento, mediador ou conciliador, também exerce um papel fundamental na manutenção do equilíbrio entre consumidor e fornecedor. Cabe a ele garantir a efetiva participação de todas as partes, sem que uma se imponha, pelo seu poder ou condições de negociação e argumentação, sobre a outra. Compete ainda ao mediador ou conciliador alertar as partes (ainda que indiretamente, através de um teste de realidade, por exemplo, ou identificando a necessidade de uma das partes obter aconselhamento jurídico) quando suas opções forem excessivamente prejudiciais para uma delas[5]. Isso de forma alguma afeta a necessária neutralidade do mediador ou conciliador, o qual dever ser sempre imparcial, independente e competente.
A imparcialidade e independência dizem respeito à necessidade do mediador ou conciliador ser um terceiro isento, não comprometido com nenhum dos lados. É muito importante que não represente qualquer grupo de interesses e seja, pois, completamente neutro. Somente assim será possível garantir a concretização do princípio da igualdade, porque é preciso que sejam oportunizados em igual medida espaços de manifestação, privilégios ou benefícios, respeitada a vulnerabilidade do consumidor.
O comprometimento do mediador ou conciliador é com a lisura, justiça e equilíbrio do método, e não com o interesse de uma das partes. Por isso, pode, sem tomar partido, alertar para acordos manifestamente injustos ou desequilibrados[6].
Em todos os casos, os meios autocompositivos surgem como um mecanismo concorrencial e/ou complementar à atividade jurisdicional, a qual não se cogita seja excluída dentre as opções que se oferecem ao consumidor para composição de seus conflitos.
[1] Vide, por exemplo, a esse respeito a Súmula 381 do Superior Tribunal de Justiça: “Nos contratos bancários, é vedado ao julgador conhecer, de ofício, da abusividade das cláusulas”.
[2] Veja nesse sentido um dos considerando da Resolução 125/10, do CNJ: “CONSIDERANDO que o direito de acesso à Justiça, previsto no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal além da vertente formal perante os órgãos judiciários, implica acesso à ordem jurídica justa; CONSIDERANDO que, por isso, cabe ao Judiciário estabelecer política pública de tratamento adequado dos problemas jurídicos e dos conflitos de interesses, que ocorrem em larga e crescente escala na sociedade, de forma a organizar, em âmbito nacional, não somente os serviços prestados nos processos judiciais, como também os que possam sê-lo mediante outros mecanismos de solução de conflitos, em especial dos consensuais, como a mediação e a conciliação”.
[3] Catarina Frade. A resolução alternativa de litígios e o acesso à justiça: a mediação do sobre-endividamento. Revista Crítica de Ciências Sociais [online], 65/2003, p. 111/112. Disponível on-line em http://rccs.revues.org/1184. Acessado em 8/3/2017.
[4] Nadia de Araujo, Olívia Fürst. Um exemplo brasileiro do uso da mediação em eventos de grande impacto: o programa de indenização do voo 447. Revista Direito do Consumidor, ano 23, vol. 91, jan.-fev./2014, p. 341.
[5] Amaury Haruo Mori. Princípios Gerais Aplicáveis aos Processos de Mediação e Conciliação. In Luiz Eduardo Gunther e Rosemarie Diedrichs Pimpão (Coord.). Conciliação: um caminho para a paz social. Curitiba: Juruá, 2013, p. 188/189.
[6] Ibidem, p. 193.
Por Fabiana D’Andrea Ramos é professora associada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS, doutora em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), mestre em Direito pela Universidade de Heidelberg (Alemanha) e 2ª vice-presidente do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 15 de março de 2017, 8h00
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